segunda-feira, fevereiro 11, 2013

O olhar heterossexual 2

Depois de ontem, fiquei pensando e lembrando da minha infância. Eu tinha um vizinho que era uns dois ou três anos mais velho que eu, no máximo. Toda vez que eu chegava ou saía de casa, ele gritava com aquela voz rouca: "ô putão", "viado", "bixa". Obviamente, eu odiava ele – o que, pelo jeito, era recíproco. Bastava ele me ver para começar a me xingar. Eu, como de costume, baixava a crista e seguia meu rumo, incomodado, mas não o suficiente para ter alguma reação mais explosiva ou violenta. Aliás, incomodado, mas com bom senso o bastante para preservar meus dentes.

Mais de uma vez eu cheguei à conclusão perfeita sobre como solucionar aquele problema. Bastava me oferecer para chupar o rapaz. Ele ficaria feliz, eu ficaria livre da coisa toda. Ao contrário do que os meus pensamentos da época podem sugerir, eu era uma criaturinha bastante ingênua. E virgem. Continuei sendo, aliás, por mais vários anos. Não que isso tenha alguma importância em si, mas é só para deixar claro que com 10, 12, 14 anos eu já sentia que sexo era algo tinha um baita poder.

Conto essa história porque ela tem uma série de coisas a revelar sobre como eu via o mundo quando criança. Antes de tudo, eu não compreendia que aqueles xingamentos tivessem algo a ver com eu gostar de meninos e não de meninas. Diga-se de passagem, naquela época isso ainda não estava muito claro para mim. OK, eu gostava de meninos, sentia atração e prestava mais atenção em homens do que mulheres nos poucos filmes e quadrinhos pornôs que eu tinha oportunidade de ver. Ainda assim, nada daquilo significava que eu fosse alguma coisa. Certamente não "putão, viado ou bixa".

O meu vizinho não me xingava por algo que eu era. Pelo contrário. Meu vizinho me xingava por algo que eu não era. Eu não agia todo machinho, não jogava futebol como todos da quadra, provavelmente era um guri delicadinho, loirinho e meiguinho. Qual o problema? Ora, todos sabem que os seres humanos que nascem com pênis devem ser grossos, fortes, brigões. Eu não era nada daquilo, portanto era parte do dever sagrado dele, como portador do olhar heterossexual, apontar para mim e garantir que o mundo soubesse disso. Eu era diferente. Eu não era normal.

Fonte: http://www.citelighter.com/science/psychology/knowledgecards/homophobia

Dali pra frente eu cresci e cruzei cada vez menos com esse vizinho. Chegou um tempo em que ele parou de me provocar, não sei bem o motivo. Aliás, não sei se alguma vez qualquer coisa que ele tenha feito em relação a mim foi com motivo (não, eu jamaaaais estaria duvidando da capacidade intelectual dele). É só que o poder da heterossexualidade/normalidade é tão comum e invisível que as coisas simplesmente são como são, as pessoas riem de quem passa, apontam o dedo e gritam. Eu, por fugir da norma, precisava imediatamente ser colocado de volta no meu lugar. No meu lugar correto, de machinho. A vida está cheia de exemplos piores de como isso é feito.


Esse texto é uma continuação do post anterior, O olhar heterossexual.

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